"Aquele que busca a aprendizagem cresce a cada novo dia;

aquele que busca o TAO decresce a cada novo dia."

DIÁRIO MÍNIMO DE UM CAOÍSTA
(narrativa atemporal)

por Walter Sarça




Andar de bicicleta é uma maneira de estar só. De ter vários mundos ao redor, e não fazer parte deles. A esmo... Desliga, conecta! Não é um isolamento. É um movimento. Uma maneira de estar com a mente em unidade com os mundos. De estar com a cabeça aberta para si e para a vida. Uma maneira de não estar com a mente fechada e segregada de todas as relações e coisas. Estar só, sem temor, com um percebimento isento de escolha. Pedalar assim proporciona o que os situacionistas chamavam de dérive... Vagar sem destino pela cidade, tornando-a nova e estranha. O poeta narra suas voltas apaixonantes pelas ruas da cidade... O que as pessoas estão fazendo? Onde estão as pessoas realmente vivas? O poeta é escolhido por uma destas ruas e de repente um vilarejo surge... Um céu comum, e ainda assim diverso. O vento dizendo outras coisas. Cantos até então desconhecidos de pássaros hipnotizadores. Outras sombras e raios de sol... Ao andar assim, para lugar nenhum, há a possibilidade de experimentar encantos e maravilhas. De mergulhar na simplicidade e inclusive voar... Adentrar a plenitude, por meio da meditação. Entrar no amor e no jogo, com a mesma seriedade de uma criança.

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Em se tratando de buscar um estado meditativo, sem a necessidade de recursos externos além da natureza, algumas pessoas poderiam alegar que andar de bicicleta é um pretexto como outro qualquer (um livro, um filme, sexo, drogas) enfim, uma maneira de querer ser feliz por meio de uma ação. E é sim, a bicicleta é um meio, uma extensão do corpo, mas não um subterfúgio ou um recurso artificial para alterar a consciência... Além do "pedalar em si" ser meditativo, ele pode ser intercalado por pausas, como uma espécie de música nova e única. A cada pausa se conhece mais, em ambientes e situações inesperados, e assim encarar e examinar o outro, a solidão, meditar... E para isso é preciso estar só, sem contaminação, mesmo que faça pelo caminho contatos enriquecedores.

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Maravilha! Esse é um possível estado de quem anda de bicicleta. Nenhum pudor, as ruas são veias de um corpo sensual e assustador por onde se transita, se perde e se ilumina. O som do OM das rodas sobre o asfalto enquanto você desce despretensiosamente por uma estrada erma... É um mantra... Dali a pouco há o aprendizado com pessoas diferentes. Culturas, idéias. A bicicleta te leva de maneira espontânea pela estrada, sentindo o vento no rosto, pedaços de música, de vozes e risos. Te leva a aproveitar o que a cidade tem de bom, é uma motivação para sair de casa, para encontrar os outros e aprender...

Mas precisamos de uma cidade viva, com pessoas realmente vivas, onde a informação flua... Com filtros, para evitar ruído. Onde haja animo para extravasar a domesticação de trabalhos sem graça e empobrecedores. Onde não haja entupimento de carros, lixo, muros, câmeras de segurança, poluição sonora...

As duas rodas da bicicleta são o símbolo do infinito, uma ideia de grandeza insuperável, de que não existem limites. O símbolo do infinito é um truque de magia, com um conteúdo inesgotável... Nesse andar à deriva, em várias situações depara-se com o êxtase, cria-se êxtase, o que depende apenas de três coisas – um corpo, uma bicicleta e o ambiente... A magia de fato acontece, através dos cinco sentidos. Verdadeira arte do desprendimento e do gozo!

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Ando de forma agressiva, e eu diria marginalmente. Nenhum assessório, só o básico... A bicicleta, o corpo e a natureza, ah e uma barra de sonhos... Como ando e por onde ando indicam que sinto realmente a vida... São olhos do Daemon vendo o mundo em quatro, cinco dimensões, e ainda é pouco para quem tem olhos... Ah vontade de olhos! Por isso uso os cinco sentidos... O olfato terrivelmente aguçado, fisgando fantasmas no ar... A audição atenta ao movimento das formigas e ao crescer da grama. Estes olhos que desenvolvo durante as pedaladas observam pessoas tristes, confusas, acreditando viver, ou vivendo intensamente a sua vida desconectada da vida, ou conectada, o que é mais raro... São geralmente expressões de medo, ódio, vaidade. Sede de drogas, armas, sexo, delírios, riqueza e outras misérias. Por vezes ruídos, palavras ininteligíveis. Cheiro de álcool, nicótica. O gosto amargo da vaidade e do orgulho, de venda, do vender-se. Esse é o ritmo da cidade, principalmente a noite, quando as mascaras caem, mas mesmo durante o dia, quando as mascaras se sustentam ponta dos pés. A doença não escolhe hora nem lugar. Morte, a “falência de tudo por causa de todos”.

Sou fruto disso, mas não ando apenas por aqui, algumas vezes estou na lua. Pedalo por outros planetas... E existe também o cerrado, as trilhas, o mistério de cada folha, flor, fruto e animal... Reminiscências do homem verde, ou Pã. A dança dos elementos em algum desses picos cobertos de arbustos e samambaias... E quando desce a noite abre-se um portal para o conhecimento do animal de poder... É preciso continuar... Trazer essa vibração para a cidade, para as pessoas que agora estão na horizontal, recarregando. Ouço suas respirações descompassadas, o ultimo suspiro de um ou outro. Ouço o som do disparo, o grito, o motor dos carros, o canto dos galos, latidos, gemidos, a TVs... E quase todos estarão de volta amanha para viver essa coisa chamada trabalho, e tristemente confundida com vida por grande parte das pessoas...
#walter sarça
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Uma onda de prazer atravessa o corpo, e a todos dou um sorriso... Evoé! Dizem que o mundo é mal. Saio preparado de casa... Levo amor. Não haverá luta. Ondas de calor, risos espontâneos, gemidos inesperados, endorfina... Por vezes me deparo com um extraterrestre. A água me leva ao Mar... O vinho me leva a um delírio... Pelas veias do corpo, um corpo que dança... Atravesso e corpo e chego ao AMOR LOUCO, um desejo descomunal pela cidade, pessoas e coisas... cada coisa uma paixão, uma vidência...

Mas não estou bêbado, levo pães, mel, uma flauta, frutas e um livro, o manto é a noite. A oração, o vento e o OM quando desço livremente pela estrada... Outras vezes são os olhares – alguns frios, medrosos, outros parecem carregar um ódio contra tudo, mas na verdade percebo apenas a doença. Crianças cheias de vida, mas uma vida viciada, que você calcula onde vai dar... Velhos com olhares mansos de quem não compreende, mas aceita... E as árvores alegres, as árvores são um Livro, claro como pessoas, mas com pinturas diferentes.

As rodas da bicicleta são o infinito... estou brincando de infinito... Desconstruindo a cidade, os desejos. Escondendo casas, devorando estrelas, amores e frutos... Por vezes sou um idiota, se vejo alguém com cara de babaca eu sigo como se estivesse “falando” comigo, mas bem que ele merece um riso também, um evoé! Não há nenhum poder maior que o riso, é o único que preciso para voltar ao Caos...

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A bicicleta funciona, mas a minha mente está fudida. Estou vendo o cérebro das pessoas por dentro. Rizomas, mandalas, constelações... O Caos em toda parte e em todas as coisas... folhas, vento, nuvens, pássaros, formigas, multidões. Possibilidades, desconstrução... Tenho andado por muitos lugares, mas estou no meu quarto, ou no meu quarto no meio da rua. Isso não perverte o sentido das coisas, não me deixa dividido, pelo contrário, estou conectado. Com tudo e com todos, mas provando o bolo de novas surpresas e um silêncio que me remete ao Vazio. Estou sorrindo, vendo que tudo fornica. Me sinto leve, perdendo e rindo. Nada que o Jogo e o Poder oferecem pode ser mais elevado do que este Salto no Vazio. Esse estar no agora, sem entender, fingir entender, mas amando, sendo, deixando de ser... É uma diversão e não depende de nada além de mim mesmo e das oito direções...

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Não se engane quem pensa que pode sair impune de uma bela volta de bicicleta. Certamente não pode. O mais breve passeio vai te cobrar no mínimo um estado de atenção elevado, um estar no agora. Não se pode andar meramente de bicicleta. É preciso andar mesmo. Atento à bala perdida, ao avião ou estrela que cai. Não se sabe onde está o bueiro sem tampa, um toco de árvore ou um tijolo no chão...

Manancial de energia, pedalar à deriva é experimentar atmosferas, estados e ritmos. Recordo situações impensadas: olhares inesperados, sorrisos, gargalhadas, gritos, músicas em tantas dimensões a ponto de criar uma trilha absolutamente onírica. Buracos "negros", raízes de árvores, quebra molas, notas de dinheiro, crianças que cruzam o caminho, voo de borboletas, insetos, pássaros, buzinas, vozes, pessoas, fantasmas, extraterrestres, eminência de assaltos, polícias, travestis, padres, comerciantes, políticos, artistas, estrelas caindo, folhas, pedras, bosques, ninfas, gatos...

Cada passeio exige que a vida seja reinventada, para além do medo do outro,de ser assaltado ou queimado vivo pelo outro, há o desafiar a si mesmo, o porão da cabeça! Ir no fundo, no mais profundo do mar, da dor de ver, de estar, de conhecer através do outro, estando em si, perdendo a cada instante, nada podendo levar senão o vento na cara...

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Pelos Oceanos, de Trem

O cavalo selvagem, a bicicleta em que ando... Um cavalo no qual pedalam Lao Tzu, Kháyyam, Whitman, Blake, Artaud, Artaud, Gibran, Hundertwasser, Ginsberg, Morrison e eu mesmo... Um cavalo não, um trem, o primeiro trem sem trilhos... Com ele, assim como nos sonhos, sei que posso voar. O andarilho das estrelas, o observador. O que quero? O Wu-Wei. Há poetas que escrevem em papéis, quadros, câmeras, muros... eu escrevo no nada, as milhões de possibilidades do jogo do infinito!

Tão cru quanto ao nascer, genial como uma criança pasma, foi para pedalar nestas bicicletas seculares que nasci. Se paro para escrever um verso, para narrar um conto, filmar um rosto magnífico, uma planta ou estrela; se interpreto um vilão, um mocinho ou um otário é apenas instante de ócio entre um "passeio" e outro - o meu real e provável trabalho. Ir em busca... Ir de um oceano a outro, descansar um breve instante no Mar Glacial, para seguir caminho rumo a Chengdoe, Tarakan, Nos Low, Maputo, Cordoba, Acre, Croatã, Mérida, Inuvik... Nem o céu, com seus cachinhos dourados, poderia estar distante.

Estou na lua, como quem anda na rua. Estou com Artaud, mas a bicicleta é de Jarry. Tanta alegria pelo Jardim do Amor... Crianças, velhos, trabalhadores, vagabundos, saltimbancos, executivos, bichos, escritores, gays, analfabetos, anjos, demônios, jogadores, catadores de lixo, mulheres loiras, morenas, ruivas, brancas... A todos e todas o meu amor, nada nem ninguém escapa da minha imaginação...

Subo até as nuvens e brindo com uma águia... estou só e sorrindo! Estou com todos, e feliz. Nem uma coisa nem outra é mais importante. Nada é mais importante. Nem deus, nem a inexistencia de deus, nem o diabo e suas "caretas de funcionário público". Abro os braços e grito. Sim... eu grito pra soltar o dragão... Ele vai livre raptar a mocinha... E solto também o herói... Por fim, nada fica de nada. Tudo passa... Vento... Fumaça... Gentes, mundos. No chão não há rastros... Nem chão!

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Voando sobre as casas. Ouvindo vozes de dentro dos sonhos. Incontáveis, em sua dança de vozes. Músicas e ruídos num redemoinho que me atravessa para o oculto. Sem drogas. Homens perambulando, eles pifaram em algum ponto de seu curso, mas formam a imagem deste animal. A cidade vista por milhares de olhos. Árvores, garoa, a baba de puta, portais para este inferno de sonhar. Cheiro de mijo, o riso distante, nuvens, estrelas, o vento na cara. Uma volta é sempre uma viagem no tempo. Ínfimo, insignificante equilibrando o curso das almas.

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Assassinato de Ciclista
                                                                                                                            
O automóvel do amor sobrevoa a cidade, voa tranqüilo e não mata nenhum ciclista, seja ele efeminado, seja machista, não importa se gosta de futebol ou se detesta essa política. O Automóvel do amor gosta de verdade das mulheres, e respeita os homens, crianças e os que sabem envelhecer. Mas o ciclista não está seguro na cidade. Há um plano automobilístico de acabar com o ciclista.  Um plano consentido inclusive pelos pedestres. Mas no final todos têm de encarar o wu-wei. Nada melhor do que estar na eminência da queda, na ponta da agulha, como dizem. O ciclista faz isto de maneira diferente do pedestre e do motorista. E faz rindo.

Mesmo assim pode ter sua cabeça na sarjeta! Inclusive (e isso vale pra você também), cada pessoa só morre mesmo quando ficamos sabendo. Hoje morreu um ciclista para mim, embora tenha morrido há mais de um ano. Ele estava apenas andando de bicicleta, claro que poderia ser a pé, e ao atravessar a rua o sinal fechou para ele nessa vida. Nenhuma manifestação por sua morte, uma cidade com 220 mil habitantes. Quantas bicicletas passeiam pela cidade agora?

Habitantes da nave caos, heróis do mundo com algumas moedas fazendo “tlin-tlin” nos bolsos, e os olhos tantas vezes lacrimejando, ou preocupados com o passado, ou com o futuro. Onde estão vocês agora senão comendo o fast-food da realidade? Pintados de palhaços da moralidade, estufados de licenciaturas e bacharelados, andando no automóvel da crueldade e cuspindo fogo na agricultura celeste. Tomem conhecimento de seus corações, pedalem até uma região desconhecida de vocês mesmos. Eia! O tempo está aberto, um novo sol se abre como uma flor para os que estão vivos, mas mesmo o sol se fecha. O trabalho mais belo é aquele que é feito com amor. Pois amem então, este é o trabalho de vocês. Trabalhem, mas gozem.

E andem de bicicleta! 



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A bicicleta e o equilíbrio precário

Estamos todos prestes a cair, nossa estrutura não foi feita pra ficar em pé, mas para cair, ainda assim teimamos. Sempre um risco sair pela cidade, um risco com tantas possibilidades que somente loucos ousariam, e ainda assim ousamos. Não entrarei aqui no campo dos motores, mas da simplicidade da bicicleta. Há um mágico “se” que se manifesta a cada segundo. Tempo, aliás, suficiente para uma queda, para que tudo mude inesperadamente.


O ciclista requer os mesmos princípios que o ator presente: equilíbrio precário, oposição, base, olhos e olhar, equivalência, variação de fisicidade, dilatação corpórea, manipulação de energia, precisão, intenção e impulso. Esses princípios dependem da trilha por onde ele decide andar.  Seja urbana ou rural, cada pedalada o leva mais longe, e ele precisa estar atento, pois um erro pode ser fatal.

Não falemos de erros aqui. Falemos apenas de escolhas. Quem conscientemente escolhe cair? Poucos, parece. Por outro lado, inconscientemente, muitos escolhem. Inclusive, o fazem o tempo todo. E com isso perdem sua pré-expressividade. Não existe um saber ou apropriação em relação a andar de bicicleta, mas sempre um aprender a aprender. Há sempre um horizonte dos sentidos, um portal, quase sempre imperceptível. Não é figura de linguagem, mas um acontecimento, do qual depende todo o corpo/espírito do ciclista.

Ao ciclista ativista é indispensável autodisciplina, autoconsciência; repetição – essa busca do eterno frescor, dos sentidos. É indispensável o encontro, as relações com ele mesmo, com objetos, com o espaço e com o outro. Somente após um longo treinamento pode o ciclista improvisar.  A grande segurança que o treinamento pode proporcionar ao ciclista é a possibilidade de realizar um caminho que tenha coração e atingir o centro do mundo. Tudo o que alcança em seu prazer diário transborda para além dos limites desse lugar secreto, chegando ao vôo, onde o ciclista é pleno. 
#Walter Sarça
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Carros de Papel

O que é que eu faço com meu mundo? Eu não sei. Ele é tão ingênuo para estes tempos automobilísticos. Eu só quero andar de bicicleta. E as pessoas, solitárias em suas cabines, querem chegar cada vez mais rápido ao lugar nenhum. Dirigindo para o trabalho, voltando para casa cansadas. Acumulando para comprar um carro mais potente que a morte, e maior que deus, um carro em que caiba toda a sua angustia, inexistência e surrealismo. Um carro que seja a máquina perfeita, como o crime perfeito contra todos os pobres caminhantes e ciclistas.

Cidade em que o medo formula as mais inquietantes questões, cidade em que a estresse acumulativa é irradiada a cada olhar e gesto, e por fim, cidade em que vemos os sonhos derreterem por conta de durarem apenas o tempo da próxima oferta.

Olhares de satisfação insatisfeita, olhares de luxuria pelo conforto, olhares insensíveis ao sol e aos pássaros, à lua e às arvores. O outro, este diabo, que importa, é preciso vencê-lo a qualquer custo. É preciso que ele me veja em minha cabine de ilusões, guiando meu carro de papel a trezentos e cinqüenta por hora e ainda sem sentido para o céu. O outro, este verme, ele só é importante nos momentos que me adula, que me inveja, mas eu sei do meu vazio, estou apenas aquecendo as turbinas, mas não posso ir além do ponto de chegada, que afinal não mais que o ponto de partida.

Sou a máquina toda imponente do senhor nas alturas. Sou a nossa senhora do transito, e para mim os sinais estão claros e abertos, sou eu a aberração dos metais, o conspirador contra todas as bicicletas inúteis e indigentes que pretendem circular, dar voltinhas poéticas como se o mundo fosse uma apresentação teatral. Não, o mundo definitivamente é um colapso nervoso, um nicho de assassinos e covardes, lugar comum do poder e da discórdia, do distúrbio e do abuso.

Escórias de um lado, autoridades do outro, e o seu céu está lá, em seu inferno motorizado, preparando uma nova tempestade de latas... 
#Walter Sarça




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